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Sobre buchos suculentos, sexo em suas mais variadas formas, espátulas de silicone e o preconceito.

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Dobradinha ou dobrada é o nome dado, em culinária, ao bucho de animais, em especial do boi, cozido em pequenos pedaços com grande variedade de condimentos e acompanhamentos. Na cidade do Porto e na região circundante, a dobrada é conhecida como tripas, sendo o prato mais conhecido designado por tripas à moda do Porto.
Confesso que há alguns anos, só de ouvir falar em dobradinha eu tinha vontade de vomitar. Minha tia fazia o prato pelo menos uma vez ao mês e durante o cozimento aquele cheiro me embrulhava o estômago. Depois de finalizado, com umas boas azeitonas, linguiças e um tempero bacana, ficava bem cheiroso, mas ainda assim eu não passava nem perto. Comia arroz puro com ovo frito, mas não ousava experimentar nem um pedacinho daquilo.
Quando consegui meu primeiro emprego em uma fábrica de jóias (emprego esse que detestava), no almoço era obrigado a pedir marmita no restaurante da esquina, como todos os outros funcionários, pois o local nem geladeira tinha. O cardápio era bom, mas não muito variado, e em um dos dias da semana a mistura que vinha era a famigerada dobradinha. E como eu tinha que trabalhar o dia todo, quase sem pausas, ou eu almoçava bem ou ficava com fome.
O prato era em verdade bem mal preparado, quase sem tempero, sem molho de tomate e umas poucas azeitonas. talvez viesse com uns pedacinhos de linguiça, mas sinceramente não me lembro, entretanto, quando me vi obrigado a comer pela primeira vez, pra minha surpresa gostei, gostei bastante. Cheguei em casa e contei pra minha tia que ficou muito espantada e me disse: "Oras, se você gostou dessa dobradinha seca de bar, vai gostar muito mais da minha, pois faço caprichada". Resumo da ópera: virei fã de dobradinha. Ironia: com o passar dos anos minha tia passou a detestar, pegou nojo, não suporta preparar e odeia comer. Curioso o mundo gastronômico.


O caso é que comecei falando de dobradinha não apenas porque comi na semana passada, mas também porque, no domingo passado, enquanto caminhava pelas ruas desertas da cidade buscando espantar minha solidão inespantável (acabei de inventar a palavra, acho), comecei a refletir sobre preconceito em suas mais variadas formas e usando a regra de três, relacionei isso com a dobradinha. Vai entender. De repente é por isso que estou encalhado até hoje. A verdade é que durante a caminhada tava pensando em sexo (em suas mais variadas formas), mas no centro da cidade passei por um carro estacionado e no vidro traseiro tinha um adesivo gigante com uma foto e a frase: "É MELHOR JAIR SE ACOSTUMANDO. SOU BOLSONARO PARA PRESIDENTE". Como é natural em qualquer pessoa com bom senso, pensei em procurar um tijolo pela calçada e depredar o veículo, mas queria chegar logo no shopping pra comprar uma espátula de silicone p'ras minhas panelas novas, então me contive. Mas depois disso comecei a pensar sobre como muitas pessoas não são apenas más, mas também muito ignorantes. E já dizia o Renato Russo em uma de suas músicas, "a ignorância é vizinha da maldade".
Na minha opinião Adolf Hitler foi o maior exemplo de preconceito da história da humanidade. Lógico que já existiram e existem outros, tá aí o Trump pra provar isso, mas assassinar milhares de pessoas apenas para "limpar o mundo" por se sentir superior a elas, faz com que, pelo menos pra mim, Hitler esteja no topo.

Então comecei a pensar sobre como, movidos por um preconceito cego, uma não aceitação do diferente, quantos Hitlers ainda existem no mundo. Pessoas ditas comuns, que julgam a si mesmas "pessoas comuns" cidadãos corretos, seguidores da moral e dos bons costumes, mas que são capazes não apenas de julgar o outro por ser diferente, mas agir contra o outro, externar seu preconceito, sua não aceitação, seu medo (sim, seu medo) na forma de violência, uma violência muitas vezes fatal baseada em justificativas pífias de "preservação da sociedade".
Não se pode obrigar o outro a gostar do que ele não gosta, a aceitar o que ele não está disposto a aceitar, mesmo que ele esteja errado. Sim, é um saco, mas se tem uma coisa que venho aprendendo ao longo dos anos é que só temos controle sobre nós mesmos e nossas decisões, não sobre os outros, não na forma como eles enxergam o mundo e o que consideram certo e errado. Mas ainda assim não consigo deixar de ver o quanto qualquer forma de preconceito deixa o cérebro das pessoas do tamanho de um amendoim. Pessoas que realmente acreditam que queimar um mendigo na rua, espancar um homossexual até a morte ou um negro, ou seja lá quem for que ela considere diferente, inferior ou que acredite ameaçar a "ordem social natural" vai fazer do mundo um lugar melhor, que "um gay a menos no mundo vai fazer a diferença. Bem feito que o mataram. Bem feito que se suicidou."

O que me espanta, me choca na verdade é perceber que realmente muitos racistas, muitos homofóbicos acreditam que agindo contra o outro, matando o outro, estão de fato "purificando" o mundo, que vai chegar um dia quando não mais existirão gays, não mais nascerão negros, isso é puro raciocínio nazista e algumas pessoas realmente pensam assim. É de dar medo. Mas ao mesmo tempo é de dar pena perceber o quanto essas pessoas tem uma visão limitada do que é a existência humana, do quanto elas vivem somente no agora, no tempo delas, achando que não houve o passado e que o futuro é baseado no presente que elas estão vivendo. "Vamos sumir com todos agora para que no futuro não haja mais nenhum", como se, o diferente o qual elas não gostam fosse uma "doença do momento", que com muito esforço e dedicação pode ser erradicada algum dia. Como se novos "diferentes" não fossem nascer nunca mais, como se seus atos pudessem mudar a natureza humana. Sim, a natureza humana. Tudo muda com o passar do tempo e a natureza humana não é diferente. Podemos não gostar de algumas mudanças, podemos ter o nosso conceito do que é certo, errado, do que é moral ou imoral mas isso não vai mudar o fato de que certas coisas que hoje são parte da humanidade e não vão mudar. Você, todos temos o pleno direito de não aceitar algo, de não gostar, de não querer fazer parte, mas então, simplesmente viva sua vida da forma que melhor lhe convier e não faça parte. Não tente mudar o que você não vai conseguir mudar, não tente acabar com o que você jamais vai conseguir acabar, isso só faz de você alguém insignificante. Muitos aspectos do mundo e das pessoas são como dobradinha, você pode não gostar, pode achar nojento, mas a dobradinha não vai deixar de existir porque você não gosta dela. Simplesmente não a coma e pare de reclamar.



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