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Memórias do subsolo.

sexta-feira, 2 de julho de 2010



Sou um homem doente...Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso.) Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo. Naturalmente não vos saberei explicar a quem exatamente farei mal, no presente caso, com a minha raiva; sei muito bem que não estarei a "pregar peças" nos médicos pelo fato de não me tratar com eles; sou o primeiro a reconhecer que, com tudo isto, só me prejudicarei a mim mesmo e a mais ninguém. Mas apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais.

Já faz muito tempo que vivo assim: uns vinte anos. Tenho quarenta, agora. Já estive empregado, atualmente não. Fui um funcionário maldoso, grosseiro, e encontrava prazer nisso. Não aceitava gratificações; no entanto, devia premiar - me ao menos desse modo. (É um mau gracejo; mas não vou riscá - lo. Escrevi - o pensando que sairia muito espirituoso; mas agora, percebendo que apenas pretendi assumir uma atitude arrogante e ignóbil, não o riscarei, de propósito!) Quando os solicitantes, com pedidos de informações, se acercavam da mesa junto à qual me sentava, eu lhes respondia com um ranger de dentes, e sentia prazer insaciável quando conseguia magoar alguém. Conseguia isto quase sempre. Na maior parte dos casos, aparecia gente tímida: era natural, em se tratando de solicitantes. Mas, dentre os que se trajavam com presunção, eu não suportava particularmente certo oficial. Ele teimava em não se sujeitar e tilintava o sabre de modo abominável. Por causa daquele sabre, guerreamos um ano e meio. Finalmente, venci. Ele deixou de tilintá - lo. Aliás, isso aconteceu ainda na minha mocidade. Mas sabeis, senhores, em que consistia o ponto principal da minha raiva? O caso todo, a maior ignomínia, consistia justamente em que, a todo momento, mesmo no instante do meu mais intenso rancor, eu tinha consciência, e de modo vergonhoso, de que não era uma pessoa má, nem mesmo enraivecida; que apenas assustava passarinhos em vão e me divertia com isso. Minha boca espumava, mas, se alguém me trouxesse uma bonequinha, me desse chazinho com açúcar, é possível que me acalmasse. Ficaria até comovido do fundo da alma, embora, certamente, depois rangesse os dentes para mim mesmo e, de vergonha, sofresse de insônia por alguns meses. É hábito meu ser assim.

Menti a respeito de mim mesmo quando disse, ainda há pouco, que era um funcionário maldoso. Menti de raiva. Eu apenas me divertia, quer com os solicitantes, quer com o oficial, mas, na realidade, nunca pude tornar - me mau. A todo momento constatava em mim a existência de muitos e muitos elementos contrários a isso. Sentia que esses elementos contraditórios realmente fervilham em mim. Sabia que eles haviam fervilhado a vida toda e que pediam para sair, mas eu não deixava. Não deixava, de propósito não os deixava extravasar. Atormentavam - me até a vergonha, chegavam a provocar - me convulsões e, por fim, acabaram por enjoar realmente! Não vos parece que eu, agora, me arrependo de algo perante vós, que vos peço perdão?... Estou certo de que é esta a vossa impressão... Pois asseguro - vos que me é indiferente o fato de que assim vos pareça...

Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar - me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto. Agora, vou vivendo os meus dias em meu canto, incitando - me a mim mesmo com o consolo raivoso - que para nada serve - de que um homem inteligente não pode, a sério, tornar - se algo, e de que somente os imbecis o conseguem. Sim, um homem inteligente do século dezenove precisa e está moralmente obrigado a ser criatura eminetemente sem caráter; e uma pessoa de caráter, de ação, deve ser sobretudo limitada. Esta é a convicção dos meus quarenta anos. Estou agora com quarenta anos; e quarenta anos são, na realidade, a vida toda; de fato, isso constitui a mais avançada velhice. Viver além dos quarenta é indecente, vulgar, imoral! Quem é que vive além dos quarenta? Respondei - me sincera e honestamente. Vou dizer - vos: os imbecis e os canalhas. Vou dizer isto na cara de todos esses anciães respeitáveis e perfumados, de cabelos argênteos! Vou dizê - lo na cara de todo mundo! Tenho direito de falar assim, porque eu mesmo hei de viver até os sessenta! até os sessenta! até os oitenta!... Um momento! Deixai - me tomar folêgo...

Pensais acaso, senhores, que eu queira fazer - vos rir? É um engano. Não sou de modo algum tão alegre como vos parece, ou como vos possa parecer; aliás, se, irritados com toda esta tagarelice (e eu já sinto que vos irritastes), tiverdes a idéia de me perguntar quem, afinal, sou eu, vou responder: sou um acessor - colegial. Fiz parte do funcionalismo a fim de ter algo para comer (unicamente para isto), e quando, no ano passado, um dos meus parentes afastados me deixou seis mil rublos em seu testamento, aposentei - me imediatamente e passei a viver neste meu cantinho. Já antes disso vivi aqui, mas agora instalei - me nele. Tenho um quarto ordinário nos arredores da cidade. A minha criada é uma aldeã velha, ruim por estupidez, e, além disso, cheira sempre mal. Dizem - me que o clima de Petesburgo está - me prejudicando e que, para os meus insignificantes recursos, a vida aqui é muito cara. Sei disso; sei melhor que todos estes conselheiros e protetores experimentados e sábios. Mas ficarei em Petesburgo; não deixarei esta cidade! Não a deixarei porque... Eh! Mas, na realidade, me é todo indiferente o fato de que a deixe ou não.

Dizei - me: de que pode falar um homem decente, com o máximo prazer?

Resposta: de si mesmo.

Então, também vou falar de mim.


( Trecho de Memórias do Subsolo – F. Dostoievski )

 
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4 Divagações

  1. Esse livro Memórias do subsolo é realmente uma leitura interessantíssima,eu ja havia me esquecido dele, é facil se indentificar com os desgostos e desprazeres do narrado,acho que é um mergulho fundo dentro do lado obscuro existentes dentro de cada um de nóis.

    eu ja havia me esquecido dele

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  2. Eu não conhecia o livro. O conteudo tao pouco li. Contudo, o exposto acima, tem gente que realmente é assim, achamos terrível, mas se sente bem em ser anti-social. Eu conheço pessoas que brigam com sua propria sombra. Felizmente, eu me livrei de um deles, está longe de mim e o meu ar ficou mais leve de ser respirado.

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  3. Muito legal eduardo...sem comentários!
    Ah!mudei de blog,comecei outro:http://wslbernardo.blogspot.com/
    acompanha lá.Abraço!

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  4. Não li esse, parece interessante, mas amargurado demais. Boa noite!

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