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Relembranças: Sobre aquele que vivia só.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

As vezes ficamos tanto tempo com medo de alguma coisa ou pessoa que esse medo acaba se tornando tão natural no nosso dia a dia como comer ou piscar. Vivemos em estado de alerta durante a maior parte do tempo, olhando ao redor, nos policiando para que não passemos por algo desagradável. Aí um belo dia você de repente percebe que nada daquilo tinha mais razão de ser há muito tempo.


Há alguns anos atrás eu tive um amigo de apelido Guto. Conheci o rapaz depois que comecei a freqüentar a sua locadora de games no bairro vizinho. Sempre fui viciado em video-games e fui amigo de metade dos donos de locadora da cidade, quando elas ainda eram moda, antes do advento das lan-houses. Fazia amizade com os caras e depois de alguns desenhos e cartazes para eles, eu já era cliente VIP do local, jogando de graça, comendo de graça, até mesmo depois do expediente.



Com o Guto não foi diferente. Fiz amizade com o cara e praticamente passei a morar dentro da locadora. Foi uma época boa e saudosa. Muitas vezes fechávamos a locadora no final da tarde, eu, ele e mais uns caras, pedíamos pizzas, refrigerantes, ligávamos os vídeo games e ficávamos jogando, comendo e bebendo madrugada afora. Muitas vezes deitávamos num canto no chão da loja e dormíamos por lá mesmo. Não. Nós não fazíamos céquiço grupal.
Com o tempo nossa amizade se fortaleceu. Passei a freqüentar a casa dele, conhecer os amigos dele. Pra mim, que sempre fui um solitário de carteirinha, era um sonho. Ele era mais novo do que eu e morava sozinho numa casa velha, a mãe era falecida e o pai foi embora há muitos anos. Ele tinha uma avó que morava por perto, mas era um cara do tipo "deixa que eu me viro sozinho, não preciso de ninguém".
Foi essa característica dele que me encantou. Eu que sempre fui um filhinho da mamãe, mimado, superprotegido, que fui ao centro da cidade sozinho pela primeira vez com 15 anos, de repente encontrar um sujeito mais novo do que eu, morando sozinho, fazendo tudo da maneira que quer e na hora que quer. O estilo de vida dele para mim era um sonho.
A casa dele não era uma casa, mas sim um lixão. Poucos móveis, a maioria velho e quebrado, panelas velhas e amassadas, nada na geladeira ou coisas já vencidas, uma pia de louça de uma semana atrás pra lavar, um pedaço de espuma mofada que ele chama de colchão sobre um caco de madeira que ele chamava de cama. Sim, ele tinha toda a liberdade que queria, mas nenhuma organização, era totalmente largado. Mesmo assim aquela vida me encantava. Ele vivia como um porco, mas um porco livre e desimpedido.

Era o auge da internet na época, início da banda larga. Os jornais de domingo vinham com CD's grátis da AOL com discador e todo mundo achava o máximo. Até então eu havia tido pouco contato com a internet. Pouquíssimo na casa de um primo, mas foi na casa do Guto que me viciei. Ele era do tipo que trocava o dia pela noite. Passava as madrugadas jogando online e dormia durante o dia todo. Hoje eu percebo que muitos dos traços de personalidade dele vinham de uma depressão e de uma carência as quais ele fazia uma força sobre-humana pra esconder do mundo. Sempre tive facilidade em perceber os sentimentos dos outros.
Apesar de tentar esconder isso do mundo, não demorou muito para que ele visse em mim a companhia e a ajuda que estava lhe faltando. Ele tinha vários amigos, mas eu, também por carência era quem passava a maior parte do tempo com ele. Na época eu estava desempregado e também não estava estudando, tinha tempo de sobra para me dedicar ao meu mais novo amigo.
Ele vivia de pequenos bicos e rolos. Ocasionalmente um emprego aqui, outro ali, que duravam no máximo 3 meses antes dele inventar alguma desculpa para desistir do cargo. Ele vivia viajando pro Paraguai pra comprar muamba de games ou computador. Como confiava muito em mim, me deu uma cópia da chave da casa para que eu pudesse entrar e sair na hora que eu quizesse, estando ele lá ou não.
Deus, eu fiz a festa, como me aproveitei do coitado. Lógicamente como forma de gratidão eu virei o diarista dele. Lavava a louça, limpava a casa, enfim, ajudava-o a tentar transformar aquele chiqueiro onde ele vivia, num lar descente, afinal ele havia me dado a chave da casa dele pra eu fazer o que quizesse. Eu tinha que retribuir de alguma forma.
Quando ele ia viajar pro Paraguai, me pedia pra ir ficar na casa dele por um ou dois dias. Limpar as coisas, alimentar os gatos, em troca eu podia usar o computador e a internet até o cú fazer bico. Foi nessa época que me viciei na  internet e vi como é fácil achar nela o que se precisa e principalmente o que não se precisa.  Eu, sozinho numa casa só pra mim por dois dias e com internet banda larga. Nessa época o controle sobre a pornografia não era tão grande, todo o tipo de pornografia. Eu chegava as 09:00h da manhã e ficava direto até 23:00h, 00:00h sentado na frente do PC, levantando apenas pra comer e mijar.

Contudo o tempo vai passando, vamos crescendo, amadurecendo e percebendo que certas coisas não são tão legais quanto parecem. A medida em que os amigos do Guto e eu queríamos inovar, progredir, buscar novos horizontes, ele continuava na mesma, fazendo seus rolos, seus bicos, trocando o dia pela noite e vivendo em seu chiqueiro solitário. Por mais que tentássemos ajudá-lo, limpando a casa, dando conselhos, embarcando em suas idéias empreendedoras furadas, ele nunca levava nada adiante, sempre mudando de idéia, sempre desistindo no meio do caminho. Quanto mais o ajudávamos mais ele ficava dependente de ajuda, mais se acomodava em sua situação. E o pior é que o cara tinha potencial, curso superior e tudo o mais. Entretando insistia em dormir em meio a bosta de gato e comer sanduíche no almoço e jantar.
Isso foi cansando a todos e particularmente a mim. A medida em que todos foram se afastando dele eu fui o único que sobrou, afinal me sentia em dívida com ele. Pow, o cara me deu a chave da casa dele afinal. Contudo eu paguei um preço alto no final. Com o afastamento de alguns amigos ele se apegou em mim ainda mais, só que (e eu percebo hoje também, por carência e medo) tentando me controlar de todas as maneiras. Ele passou a praticamente exigir a minha ajuda para tudo o que ele precisava e queria que eu o acompanhasse na maioria dos lugares onde ele fosse, não aceitando um não como resposta, chegando a ficar bravo quando eu lhe negava algo. Aquilo foi me cansando e me irritando cada dia mais. Sim, ele havia sido legal comigo, mas tudo tem um limite.
Hoje, relembrando do meu relacionamento com o Guto, de certa forma não culpo tanto o Ricardo por querer se afastar de mim. É realmente muito complicado lidar com pessoas que jogam todas as expectativas delas em cima de você. Isso pesa nos ombros e cansa demais. Irrita. Nossa reação natural, mesmo que não queiramos é acabar se afastando mesmo. Gozado que o Guto foi bem antes do Ricardo, do Agner ou do Paulo Thiago. Eu deveria ter aprendido isso ou no mínimo previsto.
Se afastar foi o que eu fiz. Não queria ter feito isso, queria que tivesse sido de outra maneira. Eu gostava mesmo dele, ele era legal e como eu disse, tinha um potencial muito grande, mas ao invés de sair do buraco fundo onde ele estava, pegar a mãos dos outros e vir para a luz ele preferia puxar as pessoas para a escuridão onde ele estava e prender elas lá para lhe fazerem companhia. Não sei, talvez medo de enfrentar um mundo o qual ele nunca esteve realmente pronto para enfrentar.



Sou o tipo de pessoa que, quando não quer mais ver ou falar com alguém, não quer mais mesmo. Faço de tudo para não voltar a encontrar a pessoa e se isso acontece fico muito mal, muito mesmo. Vivo falando que tenho um desejo forte de matar fulano, matar ciclano. Bom, de certa forma eu mato mesmo. Assassino e enterro o corpo. Não na vida real, mas no meu coração. A pessoa morre para mim literalmente. É por isso que até mesmo vê-la na rua, de longe me incomoda, estraga o meu dia, porque para mim aquela pessoa está morta. Vê-la perto de mim é como encontrar um fantasma do passado do qual estou fugindo.
Durante anos depois que me afastei do Guto, procurei evitá-lo de todas as formas possíveis. Se o via na rua, logo fugia, tomava outro rumo. Quando isso não era possível e eu era obrigado a vê-lo, meu dia acabava. Nunca mais andei pelo bairro dele e jamais passei na rua dele novamente. Faço isso com todas as pessoas das quais me afasto. Passar na rua delas já me incomoda enormememente.
Fiquei nesse jogo de pique esconde por anos e anos. Já nem o via mais, não tinha notícias, nem sabia se ele estava vivo ou morto, mas o medo de encontrá-lo, o medo de confrontá-lo era muito, muito maior do que eu.
As vezes ficamos tanto tempo com medo de alguma coisa ou pessoa que esse medo acaba se tornando tão natural no nosso dia a dia como comer ou piscar. Vivemos em estado de alerta durante a maior parte do tempo, olhando ao redor, nos policiando para que não passemos por algo desagradável. Aí um belo dia você de repente percebe que nada daquilo tinha mais razão de ser há muito tempo.
Eu nunca mais vi o Guto.
Há pouco tempo atrás estava caminhando e como é de meu costume, relembrando o passado. Pensei nele e me veio uma saudade violenta. Como ele estaria? Será que estaria bem? Será que estaria feliz? Uma curiosidade, uma saudade e uma tristeza com misto de remorso muito grandes me tomaram. Tudo o que ele queria era alguém pra lhe fazer companhia e eu neguei isso. Sim, ele provocou o meu afastamento com o comportamento dele mas, puxa vida, ele não o fez por mal. estava apenas perdido e confuso.
Eu estava perto da rua dele e quando dei por mim as minhas pernas estavam indo pra lá. Eu não queria falar com ele, não queria vê-lo. Apenas passar na frente da casa, dar uma olhada, matar saudades, afinal nada é completamente bom ou completamente ruim. Apesar de tudo fomos amigos, nos gostamos, compartilhamos.

Virei a esquina e fui descendo a rua. Será que a casa ainda estaria igual? Será que acabaríamos nos encontrando? Como ele me receberia? Fingiria que nada aconteceu? Me trataria mal?
Parei na frente do local e de repente um misto de tristeza e alívio me tomaram. Não havia nada lá. Nem Guto, nem casa, nada. Só uma borracharia.
Tristeza porque no fundo acho que eu queria encontrá-lo lá. Sentar com ele, dizer que não me afastei por mal, que sempre o considerei e que apesar de tudo sou muito grato a ele, não só pelos favores que ele me fez, mas pela passagem dele na minha vida. E que mesmo tendo sido essa passagem conturbada, me fez feliz e me ensinou coisas. Mas, infelizmente ele não estava mais lá.
Alívio porque um peso de anos sumiu das minhas costas em segundos. Eu não precisava mais fugir, não precisava evitá-lo. E sabe-se lá desde quanto tempo. talvez ele já tivesse ido embora há anos atrás e eu ainda continuava com medo.

Hoje em dia, da passagem dele na minha vida só sobrou uma velha foto. Ele ao lado de uma pintura que eu fiz na parede do quartinho dos fundos da casa. Lá seria a sua oficina de computadores. Mais uma de suas idéias que ele não levou pra frente.
Onde quer que ele esteja eu peço que esteja bem.
Saudades e perdão.




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5 Divagações

  1. Cara!

    Muito profundos os seus textos. Também passei por essa época da internet discada, dos CDs da AOL, da febre de locadoras... enfim.

    Voltei no tempo.


    Que bom que gostou das mudanças do blog. Sua opinião para mim é muito importante. Afinal, você é sempre muito sincero. (rsrsrs)

    Abração.

    Pedro Antônio

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  2. Adorei o texto e me identifiquei em vários pontos. Já tive muitos medos e como vc disse, acostumamos com nossos medos,vamos nos tornando íntimos e eles passam a ser tão naturais como piscar, tomar água. Vários medos poderiam ser descartados, mas nem buscamos por isso, tamanha comodidade. Um faquir se acostuma a uma cama de pregos, não é? Acho que é mais ou menos assim que acontece.
    Bjs.

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  3. Vejo que somos parecidos, mas seres em caminhos diferentes em algum ponto.

    Eu ainda tenho esperança em um novo amanhecer. Cada amanhecer, é uma nova chance incrível e inusitada de viver. O sol, é realmente meu único e malévolo inimigo, rouba as horas de mim... Mas é como um inimigo de quadrinhos, sem ele, eu não existiria, e sem mim, ele não existiria.

    Pense que sua vida toda, é controlada por apenas uma pessoa. O Universo à sua volta, é todo seu, você escolhe o que morre, o que vive, o que sente e o que continua na mesma. Esse é o tal do "livre-arbítrio", você é o dono do Universo.

    Fora isso, ouça rock, mas acho que você já deve gostar daquelas músicas como Coldplay, U2, The Who, John Lennon e outras coisas legais por ai... Acho que você deve gostar de Techno/Trance também... Mas é isso ai.

    Vale a pena viver, esqueça o passado... São apenas sombras.

    E ouça "Steppenwolf - Born To Be Wild"

    Abração o/

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  4. Olá, olá!
    Seu texto é instigante, me fez ler até o fim...
    É, quando alimentamos o medo, ele mata de fome vários outros sentimentos. O melhor mesmo é desencanar e não deixar o tempo passar, enfim pode ser tarde demais!

    Abraços, dá um pulo na minha janela depois!

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  5. Amigo!
    Talvez tenha sido melhor assim, ou seja, ele não estar... Mas acho que valeu teres repensado sobre tudo e reorganizado os teus pensamentos a respeito.
    Bjsssss e bom domingo, sozinho ou não, sinta-se feliz, meu querido! Você merece, viu?

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Muito obrigado por comentar. Sendo contra ou a favor de minhas opiniões, as suas são muito interessantes para mim. Tenha certeza!