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Sobre ouriços amarelos, 50 agulhas quentes e ingenuidade.

domingo, 17 de abril de 2022

Anos atrás, quando ainda estava no colegial eu tinha um amigo com o qual vivia grudado. Era a época de ouro dos videogames da 4ª geração, como o Mega Drive e o Super Nintendo, das locadoras onde você pagava pra jogar por hora os jogos do momento como Street Fighter II, Mortal Kombat e Super Mario Brothers. Conheci esse garoto através do irmão dele, com quem estudava, mas como é de meu costume, por algum motivo ainda a ser desvendado em terapia quem sabe, eu sempre tive mais facilidade em fazer amizade com garotos mais novos do que eu. Enquanto os amigos da minha idade já pensavam em sexo, faculdade e em carta de motorista, eu, que nunca tive uma infância muito livre, mesmo beirando os 20 anos ainda gostava de desenhos animados, videogames, brinquedos e coisas do tipo. E mesmo hoje, depois de adulto, tendo consciência de que sempre fui homossexual, na época não sabia como lidar com isso. Na minha cabeça eu era só um esquisito e confuso, achando que mais dia, menos dia eu me tornaria “normal” como todos os outros garotos.

Eu e esse amigo éramos unha e carne, muito compatíveis, o que descobri, anos mais tarde, deixava o irmão dele furioso. Como passar dos anos a coisa foi piorando e sempre que tinha oportunidade ele vinha com brincadeiras estúpidas como cascudos, socos no braço, chutes na perna, beliscões, sempre com uma intensidade mais forte do que o comum, a ponto de me deixar com manchas roxas por todo o corpo, o que minha mãe percebia e odiava. Por que eu permitia que ele fizesse isso comigo? Bem, além do fato de eu ser um bunda mole covarde desde que me entendo por gente, tinha medo de que, caso reclamasse, fosse obrigado a terminar a amizade com o irmão mais novo. E como sempre fui solitário e carente, preferia me sujeitar aos mais tratos do meu amigo do que perder a amizade do irmão dele. Basicamente é a inversão daquele ditado popular, no meu caso "antes mal acompanhado do que só". Hoje claro, percebo o quanto isso me fez mal, talvez de forma permanente.

Talvez por ciúme do irmão mais novo, talvez por simplesmente me achar um idiota, o irmão mais velho, o que estudava comigo e me maltratava fisicamente sempre que podia, começou a espalhar que eu devia ser gay (o que hoje sabemos ser verdade) e que eu estava levando o irmão dele pra esse lado (o que não tinha nada a ver), já que passávamos boa parte do tempo jogando videogame no quarto, de porta e janelas fechadas. Fazíamos isso unicamente para vedar a luz do sol e tornar o jogo mais imersivo (se é que isso era possível na época dos 16 BITS). Com a luz entrando pela janela não dava pra ver a tela direito, enfim, era mais legal. Não passava pelas nossas cabeças que isso pudesse ser mal interpretado, principalmente pelo irmão dele, que se dizia meu “amigo”, mas aconteceu.

Foi num réveillon que, durante uma conversa, a mãe dele contou pra minha as suspeitas do filho mais velho quanto a mim. Garantiu que achava tudo isso uma besteira, mas achou melhor que minha mãe soubesse por ela. Havíamos sido convidados pra passar a virada com eles e enquanto estavam todos na sala conversando sobre isso, eu e meu amigo, claro, estávamos trancados no quarto, zerando Sonic 2 pela milésima vez, tentando coletar todas as esmeraldas pra fazer o Super Sonic amarelo. A noite acabou, fomos minha mãe e eu pra casa e foi quando ela me contou o teor de toda a conversa que teve durante a noite. De minha parte fiquei chocado e bastante magoado, não pelas suspeitas com a minha sexualidade, já que, como eu disse, nem eu mesmo tinha certeza de nada, apesar de sentir atração por garotos desde de o pré-escolar, mas pelo fato de eu simplesmente não ter qualquer outro sentimento pelo meu amigo que não fosse uma amizade fraterna e muita, muita vontade de jogar videogames. Pode ser surpresa pra alguns mais mal informados, mas o fato de você ser gay não significa que você pense em sexo 24 horas por dia e tenha desejos por qualquer homem que cruze o seu caminho. Enfim...

Todavia o foco desse texto não é essa história. Comecei por ele para situar o que aconteceu em seguida. Na manhã seguinte, feriado de 1º de janeiro, indo ao mercado com minha mãe, ela, num tom de voz autoritário, deixou claro que nunca mais queria que eu voltasse a ver meu amigo, o irmão dele e nem a família, que sequer cumprimentasse na rua. E embora eu tenha ficado extremamente magoado pelas acusações que me foram feitas, bem, era anos de amizade, então questionei a minha mãe sobre a possibilidade de nos reunirmos todos novamente e conversamos sobre isso, esclarecer que não era nada disso, que eu e o irmão dele éramos só amigos e tudo o que fazíamos era jogar videogame sem parar. Pra minha surpresa e profunda mágoa, minha mãe se virou pra mim furiosa e disse:

“Não seja idiota Eduardo. Você não tem amigos! Você não tem nenhum amigo! As pessoas te fazem de trouxa, porque você é muito ingênuo. Ninguém é seu amigo de verdade, todos só se aproveitam de você quando precisam de algo! Pare de ser trouxa e acorde!

Se aquilo me doeu como umas 50 agulhas quentes entrando no meu olho? Bem, claro que sim. Então essa era a verdadeira opinião dela sobre mim, a opinião da minha própria mãe! E o caso na verdade nem era esse, apesar de eu ter ficado destruído com aquelas afirmações. O lance maior era, sendo minha mãe, ela estava certa? Então era isso, eu sempre fui um imbecil, sem amigos e todo mundo só se aproveitava de mim? Não a questionei mais depois disso, apesar do rasgo na alma que aquelas palavras me causaram, afinal, sendo minha mãe, com certeza ela estava certa e eu errado, com certeza ela sabia o que era melhor pra mim. Cabia a mim somente obedecer a seus desígnios.

Caso contado, pulemos para os tempos atuais, quando vez ou outra as palavras da minha mãe me voltam à mente, tanto por uma mágoa eterna que ficou quanto pela dúvida que até hoje ainda persiste, afinal “Plus çachange, plus c’est la même chose”, um velho ditado francês, "quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas". É assim que eu sinto, que mudei em diversos aspectos ao longo dos anos, mas algumas coisas sempre vão ficar comigo acho. Continuo na busca de pessoas, amigos que me compreendam de fato e acho que vou morrer buscando. Envelheci e as palavras da minha mãe hoje parecem soar ainda mais intensas e certas. Eu sou mesmo ingênuo, tenho realmente pessoas que de fato se importam comigo, que me enxergam como alguém especial, alguém que faz um mínimo de diferença em suas vidas? Porque sinceramente às vezes não parece. Não posso obrigar as pessoas a sentirem minha falta, a terem necessidade de mim, mas não consigo evitar de sentir falta delas, de sua presença em minha vida, mas quanto mais sinto isso mais parece ser algo unilateral. Não acho que não gostem de mim, só acho que como é de meu costume, coloco expectativas, esperanças, apego e amor nas pessoas mais do que elas depositam em mim. Não que façam isso proposital ou conscientemente, não consigo deixar de pensar que todos temos nossos sofrimentos e angústias e em como é complicado lidar com eles, mas me sentindo como me sinto, mas palavras da minha mãe só tomam mais força a cada dia, quanto mais eu envelheço: o culpado sou eu, o ingênuo sou eu, o iludido sou eu. Não sou importante para os outros como eles o são para mim e a culpa não é deles, é unicamente minha por ser como sou.





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