0

Sobre feridas antigas, conceitos de justiça e um estranho em terra estranha.

quarta-feira, 13 de março de 2019




Na semana passada estava conversando com umas colegas do trabalho durante nosso almoço, sobre como algumas vezes ao longo da vida conhecemos e, se dermos azar, nos relacionamos com pessoas doentes mentais, nocivas, venenosas e destrutivas.
Sempre tive muita dificuldade em fazer amizades por ser tímido demais e na escola isso me pesava ainda mais. Estar numa sala de aula com 30, 40 alunos e se sentir deslocado, um estranho em terra estranha era bem desconfortável. Não vivia isolado, tinha um amigo ou outro, mas era bem difícil, eu era (na verdade ainda sou) muito seletivo e buscava companhias com as quais realmente me identificava em um quesito ou outro. Graças a isso fiz ótimos amigos ao longo da vida escolar, alguns ficaram, outros sumiram no mundo, nunca mais os vi ou ouvi falar deles, mas enfim, coisas da vida. Todavia nem sempre dei sorte e na 5ª série do fundamental conheci um sujeito do qual acabei ficando amigo logo nas primeiras semanas de aula. Alguns anos mais novo do que eu, contudo eu o considerava mais maduro, pois era muito focado nos estudos, só tirava nota 10 em todas as disciplinas e tinha uma personalidade forte, era bem decidido quanto ao que queria pra si. Tinha uma irmão mais novo e a mãe era viúva, oficial de justiça, até onde eu sei entregava intimações. E Deus, como ele se gabava disso. Eles moravam numa casa simples, ao lado de uma rua de terra, de um grande matagal e de um córrego, tipo uma versão menor do Tietê, resumindo, moravam na beira do brejo. Eu morava alguns quarteirões acima.
No começo tudo parecia legal, normal. Ele me ajudava nos estudos, nos trabalhos, fazíamos dupla em sala. Eu, com meu imenso complexo de inferioridade na época, comecei a depender dele cada vez mais, pois me sentia incapaz de ir bem nos estudos ou fazer amigos, tinha algo nele, em sua personalidade que me incomodava muito, mas eu, por causa da carência ignorava isso. Lembram daquele velho ditado "antes só do que mal acompanhado"? Pois é, eu invertia isso, preferia estar mal acompanhado do que solitário. E ser assim é perigoso, porque algumas pessoas conseguem perceber isso e se aproveitar de suas fraquezas, foi o que ele fez.

Com o passar do tempo ele começou a querer me controlar, viu em mim um capacho, alguém em quem podia descontar sua raiva, suas frustrações, ficar se colocando em um pedestal ao mesmo tempo em que buscava me diminuir de todas as formas possíveis, sempre me lembrando do quanto eu não conseguiria nada sem a ajuda dele. Eu claro, acreditava e me sentia cada vez mais lixo.
Muitas vezes ele, com a desculpa de ser apenas uma brincadeira, me agredia fisicamente, dando socos nos meus braços, nas minhas costas, chegando a me deixar com manchas roxas. Minha mãe quando via os hematomas ficava furiosa, me perguntava por que eu permitia isso. Eu justificava dizendo que ele estava só brincando, era o jeito dele. Mas me forçar a acreditar nisso, que ele tinha um lado bom, que estava apenas brincando e que o fraco era eu, só me fazia sentir ainda mais lixo.
Fiquei preso a ele por anos, da quinta série até o primeiro ano do colegial, servindo de saco de pancadas para suas brincadeiras de vez em quando, enquanto eu ria, fingindo que achava aquilo engraçado, que era só "coisa de garoto", ouvindo ele se gabar, dizendo o quanto era melhor que os outros em todos os sentidos, o quanto sua mãe oficial de justiça, sua família era importantes e "poderosos", ela poderia mandar prender quem quisesse, no mundo dele claro.
No segundo ano do colegial ele decidiu mudar de escola. Pelo que me lembro a mãe e ele consideravam que o colégio onde estudávamos já não servia mais, queria algo melhor. Ele logicamente veio a mim exigindo que eu fosse com ele, que era o melhor pra mim, que sem ele eu não conseguiria prosseguir nos estudos. Eu claro me recusei, tinha feito bons amigos no colégio e não queria me separar deles. Na verdade foram esses novos amigos que me deram forças para suportar ele ainda estar na mesma sala que eu. Quando disse que não queria ir ele ficou bastante descontente, disse que eu era burro, que o colégio onde eu estava não era o melhor pra mim e que sem ele eu não iria adiante, mas graças aos céus, minha vontade de finalmente me distanciar dele era maior e eu mantive minha decisão.
Minha mãe me conta hoje que na época a mãe dele foi em casa conversar alegando a mesma coisa. Ela disse que éramos muito amigos, os melhores, nos conhecíamos a anos e que o filho dela vinha me ajudando muito. Que seria muito bom pra mim continuar estudando com ele e que talvez, sem isso eu não conseguiria. Minha mãe de imediato se recusou, pois percebeu a arrogância naquelas palavras. Não brigaram, não discutiram, mas minha mãe se recusou a me transferir de colégio, decisão a qual eu agradeço à ela até hoje.

Mesmo depois do afastamento, durante muitos anos fui assombrado pelo fantasma desse cara. Ele minou minha autoconfiança, minha autoestima, me agredindo física e psicologicamente. Sempre fui inseguro, sempre me achei inferior aos outros, mas ele contribuiu muito para piorar isso durante os anos nos quais estivemos juntos. Deus sabe o quanto passei anos da minha vida adulta desejando do fundo do meu coração uma morte horrível pra ele. Hoje ele não é mais meu foco, nem de longe, mas ainda dói, todas as vezes em que sinto medo de fazer algo, todas as vezes nas quais não me sinto capaz, é o rosto dele que eu vejo, sua voz me dizendo o quanto sou inferior.
Há muitos, muitos anos não o vejo mais, nem sei onde mora ou o que está fazendo agora. Sei que se formou um advogado como queria e se casou, ouvi histórias aqui e ali de que ele continua tão escroto quanto antes. Encontrei seu irmão mais novo algumas vezes, do qual também era amigo e conversamos bem pouco, sinceramente quero distância em todos os sentidos. Mas é gozado como a vida cobra seu preço de uma forma ou de outra, não creio muito nesse lance de "aqui se faz, aqui se paga" ou "justiça divina", mas para minha surpresa descobri há alguns meses que sua mãe (para meu espanto, hoje irreconhecível aos meus olhos) ficou meio ruim da cabeça e para minha surpresa continua morando perto de casa. Ele e o irmão não sei, não quero saber, mas caminhando ano passado pelas ruas perto de casa, passei por um portão e lá estava uma mulher, bem acabada por sinal, agachada, segurando nas grades feito um bicho. Ela me chamou pelo nome, o que me surpreendeu, pois como disse não a reconheci, me pediu um cigarro, o qual eu disse que não tinha e então continuei no meu caminho. Soube depois pela minha tia que se tratava da mãe deles, a mulher da qual ele tanto se gabava, a poderosa, a "Dona Florinda" da vila.
Se fiquei contente ao vê-la naquele estado deplorável, qual um bicho? Por que negar isso? Por que fingir ter uma moral que não tenho ter? Por que dizer que não me senti de certa forma vingado, mesmo não sendo ela minha algoz direta? Se ele continua tão metido, tão arrogante quanto antes, mesmo agora depois de adulto não sei, pode ser que sim, pode ser que tenha mudado, afinal as pessoas mudam, a vida ensina. Só sei que se esse fato, essa "reviravolta" o afetou de alguma forma, positiva ou negativamente, só consigo encarar como justiça. Divina ou não, mas pra mim é justiça.






0 Divagações

Muito obrigado por comentar. Sendo contra ou a favor de minhas opiniões, as suas são muito interessantes para mim. Tenha certeza!