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Sobre boas ofertas de talco, bolhas translúcidas, cinemas não recomendados e consequências do luto.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Recentemente fui ao centro da cidade ver se encontrava alguma oferta de talco de bebê. Odeio andar pelo calçadão de Bauru, com todo aquele barulho e gente irritante pra todo o lado, mendigos te pedindo esmola a cada quarteirão e fanáticos religiosos gritando ensandecidos sobre pecados e o inferno, como se eles não fossem queimar lá também. Entretanto nem sempre acho o que preciso perto de casa, tampouco quero ir até o shopping só por um produto ou dois. Decidi ir a um supermercado umas três quadras abaixo do calçadão, uma região que eu acostumei chamar de “cidade velha”, já que é onde ficam as construções mais antigas do centro, um quê de anos 70 maquiado para os tempos atuais. Tem até um velho cinema pornô pra aqueles lados, está lá desde que eu me conheço por gente e o qual eu decidi ir conhecer há algum tempo. Não recomendo.

Achei a oferta de talco que procurava e fui direto pro caixa. Enquanto a atendente passava minha compra, reparei no garoto do pacote que estava olhando fixo para outro funcionário ao longe. A moça também reparou e enquanto esperava minha nota ser impressa, perguntou ao garoto o que tanto ele estava olhando. Ele respondeu: “Estou olhando o (não me lembro o nome do rapaz). Ele chegou cabreiro hoje, azedo. Não olhou pra ninguém, não deu bom dia. Tá com uma cara feia”.

Enquanto ele colocava meu talco na sacola a colega respondeu em um tom irônico: “Ah, ele? Eu sei, ele é sempre desse jeito, mal-humorado, calado, de cara fechada. Eu mesma já falei na cara dele que ele é muito esquisito”. Eu, já com a sacola em mãos, fui saindo do supermercado e comecei a refletir sobre o que tinha acabado de ouvir e também sobre o quanto é difícil, e acredito que isso não seja só hoje, você poder sentir o que realmente quer sentir, lidar com seus sentimentos do seu próprio jeito, sem ser criticado, julgado e condenado pelas pessoas. Vivemos em uma sociedade que nos obriga cada vez mais a usar uma máscara de normalidade e a viver num padrão ao qual muitas vezes não estamos em sintonia.

Fiquei pensando nesse cara, o mal-humorado, fosse ele quem fosse. Difícil opinar sobre alguém sem sequer conhecê-lo (embora façamos isso de forma hipócrita quase 100% do tempo). Talvez ele seja mesmo um chato, ranzinza, talvez seja uma pessoa propositalmente desagradável e nada justifique o fato dele agir como age, ou talvez ele de fato não esteja bem, esteja passando por algum problema de ordem pessoal, familiar. Talvez ele aja dessa forma não por maldade ou arrogância, antipatia. Talvez ele esteja em uma sintonia diferente, tentando lidar com o que quer que seja que ele esteja passando, da forma que ele consegue. O caso é que é muito, muito difícil você divergir do padrão de comportamento que esperam de você, na família, entre os amigos, no trabalho. Você sai da sintonia da maioria das pessoas e de repente é visto como uma espécie de corpo estranho, um pequeno estrepe incômodo no pé de outros, que se consideram de certa forma, dentro do padrão social aceitável.

Minha mãe faleceu em junho desse ano, bem no último dia do mês. Não vou entrar em detalhes sobre ocorrido, mas digamos que enfim ela conseguiu o que vinha buscando. Entendedores entenderão. E apesar de já não estarmos nos dando muito bem nos últimos anos, ela com certeza me amava e eu a ela. Alguns relacionamentos são... complicados, muitos entre os pais e seus filhos. Não invejo quem não consegue imaginar, quem não entende e nem espero que o façam. Durante sua vida, raras são as pessoas que te compreendem e mais raras ainda são as que de fato fazem esforço pra te compreender verdadeiramente. Tento não guardar mais mágoa, pois você cresce é percebe que não é maldade da parte delas, só superficialidade ignorância e uma grande falta de empatia. Acima de tudo ignorância, ouso julgar.

Embora eu tenha optado por não demonstrar muito, a morte dela teve um impacto bastante forte no meu psicológico. A gente sabe que cedo ou tarde vai perder os pais, mas procuramos não ficar pensando sobre isso enquanto eles estão vivos, como se evitar refletir sobre um assunto tão fúnebre fosse lhes dar a imortalidade. Eu, depois de adulto e de perceber que a vida é bem diferente daquela que a Xuxa cantava nas letras das suas músicas, vez ou outra me pegava refletindo sobre como eu seria afetado quando finalmente a hora chegasse. Eu desabaria, amaldiçoaria em prantos, teria um colapso nervoso, uma depressão profunda por sei lá quanto tempo? Sendo filho único de uma mãe solteira, não digo que fui mimado, mas sim extremamente superprotegido.

Aos olhos de minha mãe eu era um cristal frágil que poderia se quebrar ao mais leve toque. E é claro, eu cresci acreditando nisso, foi assim que ela me criou, não para enfrentar o mundo, mas para ter medo dele. Divagando agora por sensações, posso dizer que apesar de ter dançado conforme a música que ela tocava durante toda a minha infância, eu não a admirava, mas também não a odiava, nem tinha medo dela. Acredito que a amava com um amor oriundo da dependência, de acreditar que eu era naturalmente parte dela. E literalmente somos partes de nossos pais, claro, mas quando eu digo que me considerava parte dela, quero dizer que, na minha cabecinha infantil, eu não poderia pensar por mim mesmo sem a minha mãe. Direita ou esquerda? Certo ou errado? Devo ou não devo?

Aí, eis que aconteceu e eu, apesar de ainda ter a minha tia, que para mim é como se fosse minha segunda mãe, me vi completamente sozinho. E é interessante como a vida tem um jeito muitas vezes sarcástico de nos ensinar as coisas e só não aprende quem de fato não quer.
Eu, que na infância sempre fui superdependente da minha mãe, minutos depois de saber de sua morte pelo médico já me vi obrigado a, como filho único, começar a tomar todas as providências em relação ao que deveria ser feito, manter a calma, amparar minha tia, enfim, agir de acordo com a minha idade real. Não que eu me considerasse irresponsável, mas sim imaturo e despreparado para, num piscar de olhos ser obrigado a tomar decisões tão sérias e definitivas, tanto para o fim da vida dela quanto para a continuidade da minha e a da minha tia. Funeral, sepultamento, cuidados com o corpo. E tudo isso resolvido em poucas horas, antes do dia seguinte. Era como se tivessem pegado meu cérebro e jogado num processador de alimentos, um esforço homérico para manter a concentração e um aparente controle emocional.

Por sorte, há alguns anos minha tia decidiu pagar um plano funerário desses baratinhos, que é o que temos condições, o que já foi meio caminho andado para o funeral. Entretanto o sepultamento acabou sendo um pouco mais complicado e é uma ocasião que acabou me marcando de forma bastante negativa e talvez permanente. Não que seja fácil ou agradável pra quem quer que seja, ver o caixão de um ente querido ser baixado pra uma cova, mas o caso é que nunca tivemos dinheiro o bastante para comprar um sepulcro pra família, pois até onde sei isso é bem caro e sempre esteve bem além de nossas posses.
É claro que eu sei que no momento da morte de alguém, você deve tomar todas as providências necessárias o quanto antes, mas não imaginava que, minutos depois de ser informado do óbito de minha mãe eu já teria de ter tudo acertado, o local e horário do velório, local e horário do enterro. Claro que entrei num pânico silencioso. Não tinha a menor ideia dessas coisas.

Sem um túmulo de nossa propriedade, só nos restou pleitear uma cova cedida pela prefeitura, gratuita. Que outra solução? Contudo outro problema surgiu: minha renda familiar, somada com o benefício recebido pela minha tia não me dava esse direito. Eu só conseguia pensar no corpo da minha mãe ali, no leito, esperando que eu tomasse decisões inéditas para mim. Tudo o que eu queria era que ela pudesse enfim descansar em paz. Por sorte, uma vizinha dela, uma moça desempregada, conseguiu uma sepultura em seu nome. De acordo com a garota, ela gostava muito de minha mãe e quis ajudar na medida do possível.

Se lembram que, mais acima eu disse que esse foi um momento que me marcou de forma negativa e permanente? Pois é, eu sei bem que um túmulo cedido pela prefeitura não tem a imponência de um particular, não tinha essa ilusão. Sabia que seria um enterro simples, numa cova mais simples, mas não imaginava que fosse como foi, num cemitério popular, super humilde, absurdamente distante e num simples buraco cavado na terra, num canto abandonado do cemitério que mais parecia um terreno baldio. Basicamente uma cova de indigente. Sem uma lápide, sem um nome, cuja única e quase ilegível identificação é um número pintado à mão.

Desde então tenho me esforçado para fazer as coisas da melhor forma que consigo. Agora com novas responsabilidades, preciso cuidar do apartamento que ela me deixou até conseguir vendê-lo. Não é um bom lugar e eu não o quero. Pretendo, se possível, com o dinheiro da venda conseguir uma casa melhor para minha tia e eu, já que moramos de favor na casa que um primo nos cedeu há mais de 30 anos. Casa que mais dia, menos dia, pode cair sobre nossas cabeças se não dermos um jeito de sair logo de lá.

Eu disse há pouco que a vida ensina, mas o caso é que a morte também tem essa função, de uma forma bem mais dolorosa e indigesta, mas tem. Mas o que acontece também é que ao lidar com o luto você percebe que quem enfraquece, mesmo que temporariamente, quem diminui a velocidade é somente você. O mundo e todas as pessoas ao seu redor continuam exatamente como sempre estiveram. O tempo continua passando, dias vem e vão, as pessoas continuam sendo como sempre foram. Você acaba se dando conta de que essa sensação estranha de que tudo está mais lento, borrado, difícil não vem de fora, mas de si mesmo. É como estar dentro de uma bolha translúcida enquanto do lado de fora, o mundo embaçado continua seguindo.

Sempre ouvimos histórias de terceiros ou vemos nos filmes e livros o quanto certas coisas pelas quais passamos nos mudam e moldam, às vezes muito, às vezes pouco, mas não conseguimos compreender isso de fato até que passemos por algo que nos impacta verdadeiramente. E como eu disse a vida não espera. Você não pode se dar ao luxo de cair e permanecer no chão, é obrigado a se levantar e continuar seguindo, mesmo que no decorrer da jornada que te resta você perceba que coisas dentro de você estão mudando. E talvez isso seja necessário. Não resiliência, mas adaptação, sobrevivência.


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